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A Desconsideração da Personalidade Jurídica na esfera cível: confirmação das circunstâncias excepcionais de cabimento
Por Felipe Galea e Rafael Castilho
No ordenamento jurídico brasileiro, o patrimônio da sociedade empresária é autônomo em relação ao de seus sócios e administradores. Uma das principais razões para essa separação é trazer segurança para aquele que vai empreender, de modo que o eventual insucesso da atividade empresária não acabe por onerar terceiros que tenham agido dentro dos parâmetros legais esperados para suas funções. Daí porque, via de regra, as obrigações da sociedade empresária não serão estendidas para sócios ou administradores, e nem destes para aquela.
Em alguns casos, contudo, admite-se a flexibilização dessa autonomia da sociedade empresária para que o patrimônio dos sócios ou administradores seja atingido. De fato, já previa o artigo 50 do Código Civil que, diante da verificação de abuso da personalidade jurídica mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial por sócios ou administradores, é cabível a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para a responsabilização daqueles no âmbito cível, e vice-versa (desconsideração inversa).
Os conceitos de confusão patrimonial e desvio de finalidade não estavam definidos na lei e vinham sendo construídos por doutrina e jurisprudência, gerando inconsistências na sua aplicação. Nesse cenário, veio em boa hora a Lei de Liberdade Econômica, que, além de positivar no artigo 49-A do Código Civil o princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária, alterou o artigo 50 para definir os conceitos jurídicos necessários e expor com maior precisão as situações nas quais a desconsideração da personalidade jurídica é ou não admitida.
O novo dispositivo legal esclarece que confusão patrimonial ocorre na ausência de separação de fato entre os patrimônios da sociedade e do sócio e estará caracterizada por (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (ii) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto as de valor proporcionalmente insignificante; e (iii) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial (§2º do artigo 50). Isso significa, por exemplo, que o pagamento de uma única conta pessoal do sócio pela sociedade – e vice-versa – teoricamente não poderá ensejar a desconsideração.
Já o desvio de finalidade poderá ser caracterizado quando a pessoa jurídica for utilizada com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, sendo que não configura esse requisito a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica (§§ 1º e 5º do artigo 50).
A nova redação legal (§4º do artigo 50 do Código Civil) também deixa claro que a existência de grupo econômico, por si só, não é suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica.
Outra alteração interessante é a necessidade de comprovação, pela parte que fizer a alegação, seja particular, seja o Ministério Público, de que os sócios ou administradores atingidos foram beneficiados diretamente pelo abuso (caput do artigo 50).
Essas alterações legislativas, aliadas à previsão do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com oportunidade de defesa dos potencialmente atingidos pela medida previamente à sua concretização (artigos 133 e seguintes do Código de Processo Civil) contribuem para a proteção da atividade econômica e ajudam a pavimentar caminhos para investimentos privados no Brasil.